(R)Evolução do Constitucionalismo Democrático no Brasil
- GUSTAVO RABAY GUERRA
- 7 de set. de 2015
- 13 min de leitura

Balanço Crítico dos 25 Anos da Constituição, com Especial Referência à Estabilidade do Texto Ápice.
RESUMO
Analisa o panorama de mudança e estabilidade constitucional e o risco que representam as propostas de emenda à Constituição que visam promover profundas reformas no Estado brasileiro, sobretudo as PECs que tramitam no Congresso Nacional tendentes à realização de revisões amplas do Texto, como as propostas de “mini-constituinte”, “constituinte exclusiva ou especial”. Tais PECs vêm frequentemente sendo apresentadas para contrapor a força criativa do Judiciário, que ocupa a centralidade dos grandes debates sobre a relação Direito e Política. Em breve comparação meramente ilustrativa com a experiência norte-americana, demonstra-se que a vanguarda e qualidade do Texto está menos associada à extensão da Carta e muito mais relacionada ao tipo de mudança que ela recebe.
No transcurso dos 25 anos do constitucionalismo democrático brasileiro, inaugurado com a mais avançada e complexa de todas as cartas políticas promulgadas no país, nota-se um movimento pendular de exaltação das qualidades do Texto Fundamental de 1988 e, ao mesmo tempo, de canhestra interpretação de que essa mesma norma traz em si a culpa por não se ter alcançado todos os direitos e garantias projetadas em sua estrutura discursiva.
À vista da tão reverberada ineficiência dos governantes, sobremaneira do Congresso Nacional, que, no legítimo uso de sua discrição, não encaminha projetos de leis necessárias à manutenção da vida social, o Judiciário se protrai como essencial garante do Estado democrático e dos direitos fundamentais. Fala-se bastante em ativismo judicial, judicialização da política (e das relações sociais como um todo) e, até mesmo, em juristocracia ou supremocracia - a ditadura do judiciário e, mais detidamente, do Supremo Tribunal Federal (STF)
Em realidade, o orgão de cúpula do Poder Judicial brasileiro, investido da difícil tarefa de controle de constitucionalidade das leis no Brasil e, ainda, da competência para editar súmulas de jurisprudência com efeito vinculante, predeterminando a interpretação a ser conferida por tribunais inferiores, expande seu papel nos domínios da política e, assim, ocupa a centralidade nos debates sobre mudança social e transformação do status quo. Em outras palavras, o STF se firma com protagonista do desenvolvimento e efetivação de direitos consagrados na Constituição, fixando sentido político-ideológico para os deveres do Estado.
Mas como mediar essa nova tensão que surge entre o judiciário e a democracia, conquanto o juiz passa a ser considerado o mais legítimo canal do Estado democrático de Direito, frustrando, inclusive, a lógica das maiorias - o chamado princípio majoritário? Há como se conciliar democracia e essa nova feição do constitucionalismo, defendida por magistrados e outros atores da Administração da Justiça, na radicalização da efetivação de direitos fundamentais por meio da interpretação jurídica? Se faz necessária, em alguma medida, a contenção desse avanço do Direito em relação à política3.
O caminho adotado pela Câmara dos Deputados, ao aprovar, no âmbito da Comissão de Constituição e Justiça, a Proposta de Emenda à Constituição 33, de 2011 (PEC 33/2011), foi o pior possível. Visível golpe contra a democracia, a PEC é marcada por um esquizofrênico autoritarismo, que joga a Constituição contra a Constituição, opõe-se ao primado da divisão das funções do Estado (princípio da "separação dos poderes") e inviabiliza a independência judicial do próprio STF, em flagrante tentativa de retaliação do ativismo judicial.
A PEC, caso aprovada, condiciona os julgamentos de ações diretas de inconstitucionalidade e a aprovação de súmulas vinculantes ao Congresso Nacional, aumentando, também, o quórum mínimo para a deliberação dos Ministros do STF, nessas duas hipóteses, para a qualificadíssima (e impraticável) maioria de 4/5 dos membros do Tribunal. Ao submeter as decisões do Supremo ao Congresso, esse poderia cassá-las, confirmando sua hegemonia por meio de referendo popular. O Supremo não seria mais Supremo. A última palavra seria do Congresso e do “povo”.
Seria um trágico (e farsante) retorno ao polêmico debate entre Carl Schmitt e Hans Kelsen sobre quem deve ser o guardião da constituição?4 Para o autor da Teoria Pura do Direito, não resta dúvidas que o papel de guarda da Constituição incumbe ao Tribunal Constitucional. Carl Schmitt, por sua vez, considerava o Führer o legítimo defensor da constituição e, por conseguinte, detentor do poder último de controle de constitucionalidade das normas: “o Führer protege o direito, pois ele cria o direito sem medições, por força da sua liderança como Juiz Supremo”.5
Ou seria, ainda, a PEC um redivivo Estado Novo? Na Constituição de 1937, outorgada por Getúlio Vargas, o parágrafo único do art. 96 permitia que o ditador, em nome do “bem-estar popular”, submetesse a lei declarada inconstitucional ao crivo do Poder Legislativo que, por sua vez, estava dissolvido e era exercido por ele próprio, o ditador.
Em que pese considerar-se a PEC 33/2011 tão frágil a ponto de ser declarada inconstitucional até pelo porteiro do Supremo, como diria Lenio Streck, é preocupante o fato de ser a mesma alardeada em tempos de mensalão e chegar mesmo a ser aprovada na mais importante Comissão do Câmara dos Deputados. Ao mesmo tempo, sua mera cogitação nos leva a refletir sobre alguns temas e categorias da teoria constitucional e da política que
merecem especial atenção.
A PEC, caso venha a ser aprovada, conduzirá à violação do princípio da interdependência entre os poderes e, consequentemente, a violação de cláusula pétrea da Constituição, podendo ser declarada inconstitucional pelo próprio STF. É de se supor que estudantes do segundo período de Direito e grande parte dos cidadão brasileiros (assim espero) saibam muito bem que cláusulas pétreas são limites materiais ao poder de reforma da Constituição, não podendo ser objeto de deliberação parlamentar (art. 60, § 4, inciso III, da CRFB).
A independência do Judiciário é, como ressaltou Gomes Canotilho (2007, p. 659-670), um “conceito de luta” (“kampfbegriffe”), surgindo como reação às sentenças arbitrárias dos monarcas e substituindo o caráter de império do soberano por parâmetros normativos gerais e abstratos. No mesmo sentir, Martin Kriele (1980, p. 159) considera a independência dos juízes mais relevante do que o catálogo jusfundamental em si, devendo ser entendida como cláusula fundamental do ambiente constitucional. Qualquer tentativa de golpe a esse estado de coisas, malferirá a própria democracia.
O problema não é recente em terra brasilis: em meio a tantas turbulências político-institucionais, a recorrentes crises de moralidade e, ainda, a notória expansão do poder judicial, sempre surgem vozes em defesa de uma mudança estrutural na ordem constitucional brasileira. Sob os falsos dilemas entre a prolixidade e a síntese constitucional e, em outro plano, entre a tendência prográmatica em contraposição à auto aplicabilidade das normas da Constituição, patinam os defensores de uma nova Assembleia Nacional constituinte ou de uma revisão constitucional (PEC 157, de 2003).
Outra investida absurda consiste na PEC 341, de 2009. Essa outra proposta defende a exclusão maciça do texto constitucional vigente daquela parte considerada meramente formal, identificada pelo autor da proposta em 189 (cento e oitenta e nove) artigos. Com isso, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB-1988), ficaria apenas com 70 (setenta) artigos. É o que o Ministro Nelson Jobim (inativo do Supremo Tribunal Federal e atualmente Ministro da Defesa) chamou de “lipoaspiração constitucional”. A PEC tramita na Câmara dos Deputados e já recebeu parecer favorável na Comissão de Constituição, Justiça e Redação (CCJ).
Independente da complexa numerologia adotada pelo proponente da emenda, algumas questões básicas de teoria constitucional não podem ser desprezadas, sob pena de se
perpetuar o discurso engendrado pelo senso comum teórico dos constitucionalistas pátrios. É o tal discurso dominante entre professores e estudiosos do Direito Constitucional desse País inigualável, repetido à exaustão nos manuais da área e nos exames de concursos públicos em geral, em que a tônica é invariavelmente recheada de semântica e da importação abusiva de marcos teóricos estrangeiros, resultando, por conseguinte, em frivolidades que comprometem a integridade do debate constitucional.
A ausência de perspectiva crítica quanto ao sentimento constitucional, à eficácia jurídico-constitucional e, sobremaneira, ao conceito transmoderno de poder constituinte, ressalvadas brilhantes exceções, propicia emergirem gritos de ruptura com o mais importante e democrático ciclo jurídico-político que o Brasil vem experimentando. Tais gritos não vêm das ruas, mas de setores conservadores do poder.
Os defensores da PEC 341, de 2009, a exemplo daqueles que bradam por uma nova assembleia constituinte ou por uma ampla revisão da CRFB/1988, consideram-na culpada pela baixa efetividade de suas normas e dos direitos por ela afirmados. Assim, recorrem ao debate constante da doutrina constitucional mais rasteira, de que existem normas materialmente constitucionais e normas que apenas estão formalizadas no texto constitucional, mas não possuem densidade jurídico-político suficiente para serem consideradas constitucionais.
A partir dessa dicotomia tradicional entre normas constitucionais materiais e normas constitucionais formais, propõem um texto mais “enxuto”, com normas de natureza estritamente constitucional. É o processo de desconstitucionalização de normas inseridas no bojo de um texto constitucional. Tais normas seriam apartadas da Constituição e realocadas em leis ordinárias e complementares. Simples assim!
O que o cidadão não sabe é que essa falácia toda constitui grave ameaça à ordem constitucional, burla à história política brasileira e flagrante desrespeito à recente experiência democrática que a Nação está construindo em seu tempo e seu espaço próprios.
O que pretendem os defensores das propostas de mudança radical do Texto Maior? No caso da PEC 341/2009, por exemplo, à similitude daqueles que reclamam uma nova assembleia constituinte ou uma revisão constitucional, percebe-se nitidamente a vocação golpista: é flagrante conspurcação do Poder Constituinte (que pertence única e exclusivamente ao povo), sob a alegação de que a aprovação da emenda ajudaria a “enxugar” os excessos da Carta Política de 1988. Como se a extensão, a prolixidade ou caráter analítico
de uma constituição conduzisse necessariamente à conclusão de que ela não se efetivará por sua própria condição. É o que Karl Loewenstein denominou de erosão da consciência constitucional: desiste-se de cumprir e conferir aplicabilidade à Constituição, esvaziando sua força jurídica (LOEWENSTEIN, 1986).
Propostas de redução maciça do Texto Fundamental são nítidas fraudes, face ao momento constitucional vivenciado, que podemos assinalar como experiência única. Por isso, concordamos com Lenio Streck, Marcelo Cattoni, Martonio Barreto e Menelick de Carvalho Netto, quando afirmam que, em quase 18 anos, “passamos por crises econômicas, uma revisão constitucional, reformas constitucionais e um impeachment. E na mais plena normalidade. Como agora. E tudo isto acontece - com transmissão ao vivo - exatamente porque existe democracia” (STRECK, CATTONI, BARRETO E CARVALHO NETTO, 2006).
Em socorro à lógica de retalhamento da Constituição, o relator da PEC 341/2009 na CCJ da Câmara dos Deputados verbaliza sua pretensão reputando ser patente “a inviabilidade da manutenção da Constituição com a extensão com a qual foi concebida”. E prossegue o parlamentar: “(...) principalmente quando se considera a constante descaracterização que vem sofrendo, mercê das inúmeras emendas aprovadas e que visam a trazer segurança jurídica aos diferentes extratos sociais, de modo que mudança estrutural é medida que se impõe e que deve ser urgentemente implementada”.
Ou seja, ele propõe a mudança da Constituição para compensar o fato de que ela foi... modificada excessiva e inadequadamente. O milagre será colocar os trilhos no lugar. Como mágica, essa emenda apagaria as demais emendas já integradas ao texto (atualmente na casa das setenta emendas), incluindo as seis emendas da revisão constitucional (art. 3 do ADCT), e faria desaparecer graciosamente as necessidades futuras e contingentes de novas reformas do texto constitucional.
Esse apego excessivo às qualidades formais do texto constitucional tem raízes no colonialismo cultural constitucional, em especial nas rasas e equivocadas comparações com a tradição norte-americana e, até mesmo, com a experiência incomum e inigualável do Reino Unido, cuja Constituição não radica em um texto unitário mas na soma de fatores normativos e históricos que a caracteriza, grosso modo, como constituição não escrita.
Só para ficar no comparativismo mais banal (e até impróprio), a Constituição dos Estados Unidos da América tem apenas 7 (sete) artigos. Mas cada artigo se subdivide em
seções internas. O primeiro artigo, relativo ao Poder Legislativo, tem 10 (dez) seções textuais. Desde então foram aprovadas 27 (vinte e sete) emendas, cada uma com seções inéditas.
Não obstante a importância geral que tais dados representam em termos de Teoria da Constituição, a extensão de um documento constitucional não quer dizer muita coisa em se tratando de Direito Constitucional Comparado, enquanto método particular do discurso teórico do Direito Constitucional. Ainda que o texto norte-americano fosse extenso como a nossa Constituição ou, ao inverso, que a nossa fosse mutilada pela PEC 341/09 e ficasse com apenas 4.400 palavras, não se poderia jamais compreender substancialmente ou pautar equalizações de uma experiência histórica sem conhecer todo o universo circundante do tempo e do lugar focalizados.
Para os que saúdam a Constituição norte-americana de 1787, um pedaço de advertência. Quem o entrega é o historiador norte-americano Charles Austin Beard (1874-1948), com sua clássica pesquisa, de 1913, sobre o grande documento da Filadélfia. Na famosa obra An Economic Interpretation of the Constitution of the United States, Beard contesta o caráter democrático da Constituição norte-americana desde então. Segundo ele, aqui citado por Bercovici (2008, 118-134) os “Pais Fundadores da República” encobriram, em cada artigo, seção e parágrafo, os interesses materiais de senhores de escravos, dos especuladores de terras e do mercado financeiro. As diretrizes ideológicas do constitucionalismo norte-americano eram, portanto, associadas à proteção da propriedade privada. Beard constatou esse projeto político-constitucional da elite conservadora, sobretudo, a partir do conjunto de artigos panfletários designados como “O Federalista” (The Federalist Papers), formulados por Alexander Hamilton, James Madison e John Jay, todos comprometidos com a política escravocrata e com a especulação fundiária.
As liberdades constitucionais eram asseguradas a todos cidadãos. Mas a expressão “nós, o povo”, contida no preâmbulo da Constituição da Filadélfia, não assegurava a cidadania a todos os indivíduos. Só a partir da 14ª emenda, ratificada em 1868, após a Guerra da Secessão, foi estendido o manto da proteção igualitária a todos. No entanto, como todos sabem, as desigualdades persistiram, em especial, pelo fato da Constituição norte-americana falar menos do que deveria. Já dizia Alexis de Tocqueville:
(...) as instituições democráticas despertam e incentivam a paixão da igualdade sem jamais poder satisfazê-la inteiramente. Essa igualdade completa foge todos os dias das mãos do povo no momento em que ele acredita apoderar-se dela, e foge, como diz Pascal, uma fuga eterna; o povo excita-se na procura desse bem, tanto mais precioso por estar bastante perto
para ser conhecido, bastante longe para não ser absolutamente provado (TOCQUEVILLE, 1977, p. 153).
De regresso ao caso brasileiro, há que se resgatar o quão diferente é nossa tradição para se evitar desperdícios nas comparações descabidas. O processo constituinte de 1987-1988 foi marcado pelo pluralismo político-ideológico e pelo cuidado demasiado com os direitos e com as garantias fundamentais. Daí que se erigiu um texto analítico, eclético e prospectivo.
Além dos seus quase oitenta incisos, o artigo 5º apresenta uma dimensão principiológica e aberta, acentuada no § 2º, que prevê a possibilidade de reconhecimento de direitos e garantias além daqueles constantes expressamente do texto constitucional, como desdobramentos do sistema constitucional e da integração internacional. Não radica o potencial transformador da Constituição em um rol extenso mas em uma carta de infinitas possibilidades, tal como deve ser um Bill of rights na transmodernidade.
A Constituição, enquanto primado jurídico-político do Estado, é um produto cultural complexo, alçado por elementos sócio-políticos, econômicos e, também, eminentemente jurídicos. Mas não é pautada isoladamente pela literalidade de seu texto. É fruto, sobretudo, do seu contexto histórico, que se articula com o da própria nação. Em alguns países nasce do conflito armado, da falta de liberdade, da insatisfação das massas com os privilégios de poucos. Surge aí a constituição como texto normativo supremo, que funda a ordem jurídica e disciplina os princípios e valores de um Estado. Mas há países que possuem constituições puramente semânticas, instituídas unilateralmente pelo governante, apenas para dar verniz ao regime totalitário que se abate sobre o Estado.
Não é o caso brasileiro, cuja força normativo-constitucional do presente e do futuro emerge de recentes e contínuas conquistas sociais, a partir de um processo constituinte que consagrou, de modo inédito, a participação popular. Os sucessivos avanços em matéria de jurisdição constitucional, somados às emendas constitucionais e respectivas reformas do Estado, em que pese o malferimento de um ou outro segmento da sociedade, demonstram a ocorrência de um fluxo inédito de resignificação do modelo político e jurídico do Brasil, com fortes embates em torno do alcance dos direitos e garantias fundamentais.
Não devemos desperdiçar a experiência constitucional que vivenciamos: é preciso dar aplicabilidade à Constituição, promover sua evolução, não retalhá-la, conforme interesses setoriais ilegítimos, que surgem exatamente em meio a crises éticas.
Nas propostas de mudança radical do Texto Maior e na doutrina tradicional sobrevive uma dicotomia clássica a merecer nossa atenção: a que classifica as normas entre materialmente constitucionais e formalmente constitucionais. Sobre esse tema, devemos dedicar algumas linhas.
Por norma constitucional material se entende aquela que revela os princípios básicos da formação e conformação de uma sociedade politicamente organizada (Estado), assegurando os direitos dos cidadãos. E diz-se que uma norma é apenas formalmente constitucional quando não retrata elementos político-jurídicos fundamentais da formação do Estado ou nada acresce quanto aos direitos e deveres fundamentais, situando-se no plano constitucional apenas para vincular a todos e superar qualquer tentativa de derrocada por força do legislador infraconstitucional, não obstante pudesse ser estipulada na legislação ordinária.
Note-se que, ao tempo em que podem existir normas constitucionais materiais (reconhecidas pela dignidade de seu conteúdo político-estruturante) sem que haja um texto jurídico formal, como é o caso notório do Reino Unido, por outro lado, pode ocorrer de se inscreverem em uma constituição formal (texto normativo escrito) diversas normas jurídicas sem a pertinência temática de uma constituição eminentemente material. De certo tal não aconteceria se ela houvesse sido deferida a legislação ordinária.6
Mas esse exemplo é apenas um entre tantos, que comprovam a existência de diversas normas nas constituições que apresentam atributos estranhos àqueles relacionados ao Estado e sua formação. E o que é pior: se reclama do teor excessivamente formal de algumas normas constitucionais e o próprio Congresso Nacional, no uso do poder de reforma constitucional é que incrementa o conteúdo supostamente formal que frequentemente é atacado por propostas oportunistas de revisão.
Exemplo disso é o art. 93, I, da CRFB, com a redação que lhe conferiu a Emenda Constitucional nº 45, de 2004, que afirma: “O ingresso na carreira, cujo cargo inicial será o de juiz substituto, mediante concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as fases, exigindo-se do bacharel em direito, no mínimo,
três anos de atividade jurídica e obedecendo-se, nas nomeações, à ordem de classificação”.
A alteração promovida pela Emenda 45/2004, se processou no sentido de afastar a possibilidade de candidatos serem aprovados para a magistratura, antes do exercício por três anos, no mínimo, de atividade privativa de bacharel em Direito. Note-se que essa matéria poderia ter sido regulada em normas infraconstitucionais, como a Lei Orgânica da Magistratura (LOMAN) e a Lei Orgânica do Ministério Público (LOMP). Essa última, a propósito já previa a exigência de 2 (dois) anos de prática jurídico-profissional para o ingresso nas carreiras de promotor e procurador da república. A opção de inserir tal norma na Constituição teve o caráter apenas de dar mais autoridade e dignidade à política de recrutamento de magistrados de 1º grau, pela via dos concursos públicos.
No atual estágio de complexidade social, o novo paradigma de interdependência das funções do Estado e de dinâmica institucional de órgãos como as agências reguladoras e como o Conselho Nacional de Justiça exige uma visão mais ampla do modelo de tutela constitucional dos direitos e deveres, em que não mais lugar para dualismos maniqueístas que separam normas constitucionais entre formais e materiais de acordo com sua pertença à estrutura básica de (con)formação do Estado. Se há excessos no texto constitucional, tais devem ser equalizados mediante ação política e não por meio de enxugamentos formais que, sob o pretexto da busca pela eficiência, promovem reducionismos irascíveis e retroalimentam a crença de que o texto é responsável pelo sucesso ou fracasso das instituições. Eis aí um falso dilema.
Propostas tendentes a se promover a alardeada “constituinte exclusiva” (ou “especial”); aquelas que sustentam “uma ampla revisão constitucional”; ou, ainda, uma “mini-constituinte” – o que quer que isso possa representar – são marcadas, assim, por um delirante autoritarismo e afiguram-se nitidamente inconstitucionais, pois pretende a mutilação do poder constituinte. E aqui cabe a mesma advertência feita por Cristiano Paixão à PEC 157, de 2003:
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